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A Forma e o Vazio

December 1, 2022 Teresa Tomaz

Estou sentada à mesa da cozinha. É domingo, a chuva cai, em silêncio, ensopando as folhas amarelas que, no dia seguinte, já não estarão no chão. Surpreende-me sempre a impermanência das coisas vivas, como, num certo dia, estão lá, e no outro dia não. Penso nestas coisas, distraio-me, empurro a chávena de chá vazia que tropeça e se desfaz mal embate contra a tijoleira gelada. É a minha chávena preferida. Há flores pintadas à mão pousadas no chão da cozinha e da sala, como se um vento invisível as tivesse arrancado das cerejeiras, roseiras e japoneiras. A minha casa é a memória de uma rua num dia de abril, e é quase possível discernir o cheiro enjoativo das flores mortas misturado com a ameaça contida dos primeiros aguaceiros primaveris.

Fico em pânico. Sinto o desespero a desabrochar e a tomar conta do meu corpo, que arde e treme. Repito: partiu-se a minha chávena preferida. Tento arranjar uma forma de a consertar, percebo que será impossível colar os pedaços e recriar a forma original, procuro na internet uma idêntica, descubro que a produção há muito que foi descontinuada, navego obsessivamente por leilões, lojas de venda de porcelanas em segunda mão. É escusado. Pouso o telemóvel e resigno-me, calço as galochas e recolho os fragmentos maiores, coloco-os num saco de plástico que fecho e guardo num armário.

Tudo isto ocorreu há três anos. Escrevi parte desta recordação nas notas do telemóvel. Fecho a aplicação, levanto-me, abro as portas do armário. O saco de plástico está fechado dentro de uma caixa de cartão. Há agora outros sacos que contêm múltiplos objetos: uma jarra que o meu gato derrubou; uma dúzia de páginas que sobraram de um livro que se desfez quando caiu num tanque com água; uma pequena figura humana cuja perna esquerda e braço direito desapareceram.

Dizem-me que tenho uma relação pouco saudável com os objetos. Que, quando se estragam, quando se perdem, quando se desfazem, fico fora de mim. Penso, de forma recorrente, nas centenas de situações que podem consumir uma casa: um incêndio provocado por uma vela ou por um curto-circuito, uma inundação, um terramoto, um assalto, um desabamento. Os objetos são apenas coisas, dizem-me, é possível substituí-los, não te podes agarrar tanto, há coisas mais importantes.

Há coisas mais
importantes.

Nunca são apenas objetos. Não estabeleço com toda a parafernália de coisas esta relação íntima que me consome perante a possibilidade da sua perda. Comprei a chávena e a jarra numa pequena loja da minha cidade natal, numa época que me traz muitas recordações. A figura de cores desbotadas é uma cópia imperfeita que me foi oferecida por uma pessoa cujo silêncio ficou gravado nos membros perdidos da personagem de plástico. O livro, ou o que sobra dele, é daqueles que, de tão manuseados, ainda conservam o cheiro do perfume da casa de banho misturado com o do pão barrado com manteiga loreto, alheira grelhada, incenso e pinheiro, prova de que os livros, quando adquirem algum significado pessoal, se carregam para todo o lado, sobrevivem à infância e à adolescência, acompanham-nos na idade adulta, saltam de prateleira em prateleira, sentem a dureza da madeira das estantes e do chão das casas que alugamos e abandonamos.

Por favor, fiquem para sempre, digo eu às coisas que conheço.

A frase não é minha, é de Patti Smith.

***

Há cerca de uma semana, assisti ao documentário realizado por Jonah Hill, “Stutz”, sobre o seu psiquiatra, Phil Stutz. Não estava a prestar muita atenção, até que, no ecrã, surgiram as palavras “Loss Processing” (Processamento da Perda). Phil Stutz explica que as pessoas são más em processar uma perda, e que, antes dela, já estão preocupadas. Sugere “o poder da desvinculação”, ou seja, podemos querer muito uma coisa, mas também devemos estar dispostos a não a ter. O psiquiatra convida Jonah a imaginar algo que tenha medo de abdicar. Jonah fecha os olhos.

Imagina-te a agarrá-la como se fosse um ramo de uma árvore, é assustador, tens medo de a largar, mas largas na mesma. Quando a largas, começas a cair, mas não é uma má sensação, é uma queda lenta e gentil, para tua surpresa, mas estás a cair. Dizes: estou disposto a perder tudo. Tens de dizer em silêncio. Queres sentir o que estás a dizer. Quando o dizes, cais na superfície de um sol que estava por baixo e o teu corpo arde. Nesse momento, perdeste tudo porque o que possui é o teu corpo físico. Se o teu corpo ardeu, és só um raio de de sol entre os outros. Estás a irradiar em todas as direções. Estás a irradiar uma sensação de amor, de dádiva, que flui de ti. Depois olhas em volta e vês à tua volta um número infinito de sóis iguais àquele onde estás, todos eles a irradiar. Depois ouves os sóis a dizer em uníssono: “nós estamos em todo o lado.” É o mundo dos sóis. Aqui só podes dar, não podes tirar. Não te podes agarrar a nada, é impossível.

Este é o conceito fulcral da obra de Ruth Ozeki, “O Livro da Forma e do Vazio”. A narrativa inicia-se com a morte do pai de Benny e marido de Annabelle. Benny é um adolescente tímido, e após desaparecimento súbito do pai começa a ouvir vozes. Ao mesmo tempo, Annabelle vê o seu problema agravado, uma acumulação excessiva de objetos, aquilo que o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição ou DSM-5 carateriza como “Transtorno de Acumulação”. As vozes que Benny ouve são as vozes dos objetos que o rodeiam: os talheres, as canetas, as camisas de flanela do pai, os livros, os copos. Há uma situação, no início do livro, que é comum a uma das histórias mais famosas de Ozeki, “A Tale for the Time Being”: um pássaro vai ao encontro de uma janela da escola, sem se aperceber do que se trata, e embate contra o vidro, morrendo devido ao impacto. Benny fica perturbado, não pela morte do animal, mas pelo vidro da janela, e acaba por bater na janela com os punhos. Justifica a sua atitude quando é chamado à direção da escola:

Costumava ser areia. Lembra-se de ser areia. Lembra-se dos pássaros, da sensação dos pés deles, a andar. A fazerem pequenos trilhos. Nunca quis ser vidro. Nunca quis ser furtivamente transparente. Gosta dos pássaros, gosta de os ver da janela, por isso estava a chorar. Não devia ter-lhe batido, mas precisava que parasse.

Benny ouve os objetos, percebe se estão zangados ou calmos, tristes ou alegres. Conhece as memórias das mesas, o humor das chávenas, os pensamentos dos livros. Os objetos têm recordações. E, simultaneamente, temos o ponto de vista do Livro do Benny, um Livro que conta a sua história e que vai explicando a importância dos livros no mundo e para a humanidade.

É um conceito curioso, este, de os objetos terem memórias. Pego nas páginas guardadas no saco de plástico. Uma delas tem o autocolante da livraria onde foi adquirido, uma livraria que fechou há muitos anos.

Cresci numa cidade onde as livrarias lutavam por vingar, quando o inverno era ainda impiedoso e eterno. Enterrávamos os rostos na lã e no algodão dos nossos cachecóis enquanto aguardávamos que a senhora do café nos enchesse os sacos de plástico com rebuçados de caramelo, que depois engolíamos à pressa no recreio e surripiávamos durante as aulas. Nas tardes livres, fazia pequenos recados, ia ao talho comprar carne quer serviria para alimentar os gatos vadios, comprava resmas de papel para o meu avô e a revista maria para a minha avó. Se não houvesse pão fresco, davam-me dinheiro para comprar o lanche na escola, eu procurava caramelos perdidos nos bolsos e guardava as moedas e, quando conseguia o montante suficiente, surripiava-me à livraria mais próxima da escola. Os livros entreolhavam-se mal abria a porta envidraçada, havia pouco movimento durante a semana, e eu gostava de imaginar que as lombadas me seguiam, atentas e expectantes, olha para mim, a minha história vai agradar-te, se me levares para casa não te irás arrepender. Nessa época, não tinha acesso à internet, desconhecia as críticas literárias, as únicas pessoas que me aconselhavam eram o meu melhor amigo e a livreira. Este acabou de chegar, acho que vais gostar. A relação entre um livreiro e o leitor é peculiar, como se, sabendo os livros que figuram nas nossas estantes, conhecessem uma parte da nossa identidade escondida dos outros, revelando uma intimidade distante.

Tocava as capas com as pontas dos dedos, as mãos continham a ingenuidade própria de uma adolescente que desconhecia, então, que sempre gostaria de ver desenhos animados, descobrir histórias de fantasia, nutrir a vontade de preservar as memórias da infância, sem saber que a vida conteria muitos parágrafos dedicados ao trauma e ao abandono. Desconheço por que motivo certos livros nos chamam, sussurrando palavras que não conseguimos ouvir, palavras que se assemelham a parestesias que nos incendeiam as mãos. Foi desta forma que, por exemplo, “Uma Casa na Escuridão”, de José Luís Peixoto, me escolheu. Nada no aspeto exterior me atraiu, os portões lúgubres da edição da Tema & Debates incomodavam-me, tão diferentes das ilustrações coloridas dos livros de fantasia que devorava. Mas os livros têm motivos que a razão conhece e os leitores desconhecem. Para Benny, a biblioteca e os livros tornam-se centrais na sua vida:

Vagueava pelas estantes, deixando os títulos chamarem a sua atenção, descobrindo no processo que os livros têm as suas próprias vontades, que o escolhiam tanto como ele os escolhia a eles.

“O Livro da Forma e do Vazio” é uma história densa, às vezes com temas complexos, pois Ruth Ozeki é, além de escritora, sacerdotisa budista. Tal como “A Tale for the Time Being”, o zen ocupa uma parte importante da narrativa. Há uma personagem que nos remete para a japonesa Mari Kondo, uma empresária especializada na arrumação. Nesta história, Aikon é uma mulher que abdicou da sua rotina frenética para se tornar sacerdotisa. Ruth Ozeki escreve narrativas dentro de narrativas, e, neste livro, existem vários pontos de vista: o de Benny, Annabelle, o do Livro do Benny e do livro que Aikon escreveu (portanto, do ponto de vista de Aikon também). Já perto do fim do livro, Aikon descreve um episódio da sua vida: quando estava a servir chá ao seu mestre, a chávena escorregou e caiu ao chão. Era a chávena preferida do mestre, tinha-a recebido do seu professor. A chávena não se partiu, mas o mestre disse:

Já estava partida.

Aikon sente-se confusa. Não havia lascas ou qualquer defeito provocado pela queda. O mestre conta a história de quem fez a chávena, dispersando-se na narrativa, e Aikon, impaciente, repete que a chávena não está partida. O mestre responde-lhe:

- Para mim, está. É a natureza de uma chávena de chá estar partida. Por isso é que é tão bela agora, e porque a aprecio enquanto posso beber dela. - Fitou-a com carinho, deu um último gole e pousou a chávena vazia cuidadosamente no tabuleiro. - Quando se for, foi-se.

Nesse dia, o meu professor deu-me uma lição inestimável sobre a impermanência da forma e a natureza vazia de todas as coisas. (…) Quando tudo o que imagino meu - as minhas posses, a minha família, a minha vida - pode ser varrido num instante, tenho de perguntar-me: O que é real? A onda lembrou-nos de que a impermanência é real. Isto é acordar para a nossa verdadeira natureza. Já está partida. Sabendo isto, podemos apreciar cada coisa como ela é, e amarmo-nos uns aos outros como somos - completamente, incondicionalmente, sem expetativa ou desapontamento.

O que significam os livros nas nossas vidas? Os objetos que guardamos e expomos nas escrivaninhas, nas estantes, nas paredes das nossas casas, os objetos que vestimos, colares enrolados, anéis pendurados nas articulações, o que significam? Talvez a pergunta não seja esta. O que procuro não é esse significado, mas sim a aceitação da impermanência, abrir a mão e observar o movimento ascendente, os objetos não caem, libertam-se, como pássaros que partem, os livros não se esquecem, as histórias são problemas de forma e de vazio, como a poesia, como as fábulas, como as epopeias, como as palavras de Patti Smith:

Acredito no movimento, acredito no mundo, esse balão que vai continuando ininterruptamente a sua rotação. Acredito na meia-noite e na hora do meio-dia. Mas que mais acredito? Às vezes em tudo. Outras vezes em nada. (…) O meu lar é uma secretária. Uma amálgama de um sonho. O meu lar são os gatos, os meus livros e a minha obra nunca terminada. Todas as coisas perdidas que um dia poderão chamar por mim, os rostos dos meus filhos que um dia irão chamar por mim. (…) Tenho vivido dentro do meu próprio livro. Um livro que nunca planeei escrever e em que vou registando o movimento do tempo para trás e para a frente.

***

Partiu-se a minha chávena preferida. Os fragmentos de cerâmica espalharam-se pelo chão. Agora fazem parte da casa, escondidos em recantos inacessíveis ao olhar. Passar-se-ão anos até que encontre um diminuto pedaço, uma pétala de cores desmaiadas. Nessa altura, imagino, já terei aprendido que as pétalas são feitas para as apanharmos com as mãos em concha, para depois enchermos os pulmões de ar, soprarmos e observarmos como rodopiam, levadas pelo vento. É assim com tudo, até connosco. Às vezes, temos de abrir os armários, desfazer os nós dos sacos, pegar nos pedaços de loiça, nas figuras de plástico, nas páginas rasgadas, largá-las, deixá-las partir. No fundo, nunca lá estiveram e estarão lá para sempre, numa existência conjunta que se prolonga até ao infinito da forma e do vazio.

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A história de Lisboa

November 21, 2022 Teresa Tomaz

28 de setembro de 2022

13h35

Entramos em Lisboa. Trazemos, na mala do carro, escombros das férias, presentes, computadores, filmes fotográficos empacotados em cilindros de plástico, gabardines para a chuva que dizem que vai cair, camisolas frescas porque aqui o outono começa mais tarde e a primavera mais cedo. Noto a impaciência na voz do locutor e o nervosismo nos gestos do João. Não gosta de conduzir aqui,

detesto,
estou ansioso por chegar,
vamos estacionar o carro e andar a pé ou de metro,
só voltamos a pegar nele no fim da viagem.

É o trabalho que me faz regressar. Não visito a cidade desde aquele casamento na estufa fria,

lembras-te, na véspera do incêndio de Pedrógão,
acordámos e julgámos que era um pesadelo,
não, enganas-te, viemos cá naquele congresso de ginecologia,
estás confuso,
aquele, no museu do Oriente, não te lembras?

 Não me lembro. As memórias de Lisboa rolam como seixos, misturam-se, perdem a identidade. Imagino o meu corpo no cais das colunas, os ombros cedendo à derrocada dos pés, dos tornozelos, das ancas, uma estátua esculpida de areia grosseira, falanges escorrendo pela pedra áspera, fios de cabelo transformados em sargaço.

14h38

Da janela do hotel, vislumbro parte do Campo Pequeno. É lá que decorrerá o concerto de Sigur Rós. A última vez que assisti a um concerto naquela sala foi há nove anos. Tenho de verificar a data no telemóvel, consultar o email, ler artigos de opinião nos jornais para confirmar. Foi também um ano antes de desmontar móveis, colocar todos os meus pertences em sacos de plástico e enfiá-los no carro da minha mãe, se algum polícia nos manda parar vamos ser multadas, estacionamos o carro no mesmo lugar onde, uns meses antes, encontraram uma pitão numa mala, o rosto da minha mãe horrorizado enquanto mastiga um croissant do Trenó,

quem guarda uma pitão no carro,
e tinha quatro metros,
não digas mais nada, vou ficar enjoada,
não te rias, não tem piada

ria-me porque não queria sentir o sabor do abandono.

14h52

Retiro a roupa da mala, pouso a máquina fotográfica na mesa. O João pergunta-me se quero ir a algum lado antes do concerto. Gostava de visitar aquela livraria no príncipe real, a ideia entusiasma-me. Olho novamente pela janela. Parece-me tudo diferente, há mais bicicletas, há mais estações de metro, e, ao mesmo tempo, parece-me tudo igual, sinto um sabor amargo na boca quando ouço

o comboio suburbano
fertagus
procedente de
com destino a
vai dar entrada
na linha número
efetua paragem em
todas as estações
e apeadeiros.

Vamos antes a pé. Mas é longe, ainda demoramos. Não faz mal. Vamos amanhã, decidimos depois.

***

Apaixonei-me por Lisboa antes de a conhecer. Uma tia-avó crescera ali, e eu habituara-me a ouvi-la discorrer sobre as ruas, as cortinas de renda bordadas com motivos florais, eram feitas assim para que a luz da cidade entrasse nas casas sem dificuldade, e eu acreditava, assim como acreditava que devíamos abrir as portas e as janelas quando trovejava, santa bárbara ajuda-nos se tivermos a casa arejada, assim os relâmpagos entram e saem.

Tivemos encontros fugazes. Os meus pais não aprovaram a decisão de me mudar, mas a teimosia do primeiro amor levou a melhor. Eu sonhava com a cidade-luz, com as suas rugas finas, Lisboa é velha mas esconde bem a idade, as saliências da calçada portuguesa onde se perdem beatas e se guardam esperanças que eu desejava conhecer, decorar-lhe os cruzamentos, perder-me nos cafés, nos museus, nas livrarias, nas bibliotecas, queria que Lisboa me amasse.

Vivi em Lisboa durante seis anos. Recordo os eventos principais: o dia em que pisei pela primeira vez o chão da universidade, a estranheza que senti por ali estar, a concretização do que, na época, era um sonho. A madrugada em que um cartaz publicitário quase me atingiu, vergado pela força do vento. Uma força semelhante que, anos mais tarde, me derrubaria no campo grande, uma mão invisível que se erguia das profundezas do meu corpo e que não me abandonaria jamais: um que vento amaina, mas que nunca sossega. Um concerto na aula magna, os dedos do destino entrelaçados nos fios das marionetas que são os nossos corpos. As viagens de comboio, o regresso à margem sul já noite cerrada, o brilho do Tejo, as caminhadas sozinha no jardim da Gulbenkian enquanto fotografava flores e escrevia histórias inacabadas. O lançamento de um livro de uma escritora portuguesa, os outros escritores dizendo-me que, se quisesse ser escritora como eles, como ela, teria de fazer uma escolha, e há escolhas difíceis, mas os artistas devem fazê-las, é tudo ou nada. Os telefonemas,

o teu gato morreu,
estou no hospital,
o teu tio morreu,
estou no hospital,
temos de mudar de casa,
estou no hospital,
foi-se embora,
estou no hospital.

Começámos por culpar a distância. Vivi no distrito do Seixal durante dois anos, era difícil ficar até tarde, Lisboa teimava que não era perigosa, calúnias, viveste no Porto e também há assaltos e violência, insistia que os seus milhares de habitantes estavam habituados e não se queixavam como eu. Perguntava-me porque não usava roupas mais joviais, tens de te adaptar, olha para as outras miúdas da tua idade, se calhar até são menos bonitas, mas arranjam-se melhor. Sempre que planeava visitar os meus pais, revirava os olhos, os vidros da janela do meu novo quarto estremeciam com a chegada dos aviões. Lisboa não gostava do anonimato, cansou-se da minha alma de provinciana, da minha inexperiência, as ruas no bairro de santos traziam-me o rumor da chuva durante a noite, a luz esmorecia, há ruas que merecem mais a luz do que outras, as ruas que gostam de sapatos de salto alto, de danças espontâneas.

Há uma noite. As luzes dos faróis dos carros no Saldanha e no Marquês de Pombal. Eu, sem casaco, já depois da meia noite, a andar, andar sem parar, queria atravessar a Avenida da Liberdade e parar no Terreiro do Paço, gastar qualquer coisa que os ossos teimam em conter. As memórias que tenho da cidade e da vida em comum abandonam-me, os poros abrem-se, deslizam, uma a uma, pelos braços nus, perdem-se nas saliências da calçada, misturam-se com as beatas e a esperança, trauteiam canções que me perseguem, a certa altura passa um autocarro noturno, penso fugir, fugir das palavras, mas sou cobarde, entro, damos voltas até irromper a madrugada, eu e Lisboa estrangeiras, sentam-se pessoas a meu lado, ignoram-me, saio numa paragem, ando, ando, ando, chego a casa, o dia engole-me.

Lisboa engoliu-me não uma, não duas,
muitas vezes.

16h35

Olho para o telemóvel, faço as contas, quero evitar os transportes públicos para chegar amanhã à faculdade de medicina dentária. Se formos a pé, teremos de passar pelo bairro onde vivi durante um ano. Há um distanciamento nesta realização, cicatrizes que me são indiferentes, esta é uma delas. Incomoda-me menos o que me lembro e mais o que não me lembro. É como se, aquando a separação, a cidade ficasse com o fio de pérolas que me oferecera, as memórias polidas, autênticas, caras. Imagino-a a lançá-lo ao rio, a água engolindo-o. No fundo do Tejo, as pérolas são como estrelas, inalcançáveis, a anos-luz.

***

Lisboa chega-me amiúde em sonhos confusos, a água do Tejo salga-me os lençóis, o corpo inquieto desloca-se como quem se atrasa para o metro. É na segurança do meu quarto que a cidade me visita, provoca-me dores de cabeça noturnas, daquelas que me acordam durante a noite, as mesmas que os médicos dizem ser sinais de alarme.

A princípio, deixei de ler. Deixei de fotografar. Deixei de escrever. Deixei de sair. Não procurei ajuda, um profissional, um médico. Vivia rodeada deles. Mas as pedras não precisam de comunicar para sobreviver.

Lembras-te?

Nunca me lembro. As memórias desses anos caem como chuva miúda. O trauma dá-me sensação de abrigo. Sei que, quando chegar a casa, estarei encharcada de qualquer das formas.

 A luz é a adaga do punhal que a cidade usa para nos ferir.

 ***

O livro de Joana Bértholo chegou-me às mãos como quase sempre os livros me chegam: por acaso. Folheei-o numa livraria, li uma dezena de páginas, já não me consegui afastar dele. A História de Roma. Buenos Aires, Berlim, Marselha. Território neutro. E Lisboa. Aqui, Lisboa não é simplesmente pano de fundo da narrativa. Lisboa está viva, Joana e o ex-namorado são células nas artérias da cidade, transportam palavras e histórias como oxigénio, as cidades alimentam-se de palavras e histórias. Aqui, Joana reflete sobre a maternidade – sobre o não querer ser mãe – e sobre a relação com este homem que a visita.

Este texto não é sobre maternidade, mas podia ser. Leio amiúde histórias ou narrativas autobiográficas sobre ser mãe, talvez porque a noção de maternidade me provoca tanta estranheza. Eu, que tenho uma relação muito próxima com a minha mãe, eu, que estranho a maternidade, estás a ficar velha para ter filhos, a tua sorte é o teu namorado ser mais novo do que tu, nunca é a altura certa, só trabalhas, vais arrepender-te, não há amor maior, é a maior felicidade do mundo, o teu gato não é um filho, sabias, quando me dás um neto, um bisneto, não sejas egoísta.

Mas aquilo que me fez folhear este livro, tirar anotações, escrever nas margens, sublinhar, marcar passagens com aqueles separadores coloridos, foi a dinâmica de Joana nas cidades onde viveu, a forma como discorre sobre a sua existência, como ela escreve,

fui pessoas tão diferentes ao longo do tempo e dos lugares.

Toco ao de leve nas páginas deste livro de capa encarnada. Pergunto-me se eu e Lisboa conseguiremos, alguma vez, voltar a caminhar sem pressa ou ressentimentos, sem

lembras-te,
não te lembras,
não foi assim,
vê se te recordas,

sem memórias. Pergunto-me se, em certa medida, Lisboa é uma parte de mim, a parte que abandonei na entrada do prédio na cruz de pau, no autocarro noturno, no quarto vazio no bairro de santos, no banco puído do fertagus, na estação de almada, num jardim em telheiras, na gare do oriente.

 20h48

As bancadas do Campo Pequeno estão quase cheias. Há pessoas com máscaras cirúrgicas, outras com cigarros nas mãos, fumando à revelia. Sento-me num dos lugares da plateia, já não tenho idade para estar de pé tantas horas, justifico a rir. Olha, há nove anos estávamos ali, lembras-te? Está muito calor, há uma pessoa que tosse e abandona o seu assento. Olho para as pessoas, não consigo distingui-las, são como os seixos-memórias, são tantas. O vocalista, Jónsi, aparece, há palmas, há assobios. Começam a tocar. Um amigo avisa-me que está aqui, algures. É uma das pessoas que Lisboa me trouxe e que Lisboa me tirou. Tento encontrá-lo, atravesso os corredores, mas apercebo-me que já não os conheço como antes, manda-me uma mensagem, tive de ir embora, percebo, também tive de me ir embora demasiadas vezes antes. Volto para os acordes. Tento fazer as pazes com Lisboa naquela sala, mas Lisboa não me ouve.

No final do concerto, uma amiga minha dirá que viu pessoas a chorar. O João olhará para mim de soslaio, rir-se-á. E eu rir-me-ei também. Porque, na verdade, não sei se chorei pela música, se chorei pela pessoa que fui, e que, algures, desapareceu.

 29 de setembro

1h43

Sento-me para escrever sobre Lisboa. Joana Bértholo parece-me irreal. A História de Roma parece-me irreal. Chego à conclusão que ainda não me sinto preparada para escrever sobre esta cidade. Mas agradeço em silêncio à escritora por este livro. Sei que a Joana não sabe e provavelmente nunca saberá, mas os livros são, às vezes, os escudos com que nos defendemos das adagas de luz. E talvez um dia escreva mais sobre Lisboa.

Talvez um dia.
Mas não hoje.

Hoje, ainda estamos por cá.

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