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Pontos dolorosos

December 8, 2022 Teresa Tomaz

Tenho 31 anos, mas sinto-me como se tivesse 60. As pessoas na minha vida podem achar que estou a exagerar, mas estou sempre com dores. Todas as manhãs acordo e sinto como se um trator tivesse passado por cima de mim. Sinto que um autocarro me atropelou. Acordo rígida como um coiote com reumatismo. Tenho um médico, tenho um ex-namorado. Interrompem-me constantemente, aparecem detrás de uma árvore e bloqueiam-me o caminho. Uma dor invisível, impossível de provar. Acreditem ou não.

“Tender Points”, Amy Berkowitz (2019), Nightboat Books

A intensidade da Dor é sempre a referida pelo doente.

Circular Normativa n.º9 da Direção-Geral da Saúde. “A Dor como 5º sinal vital. Registo sistemático da intensidade da Dor.” 14 de junho de 2003.

*

Estou deitada numa sala que parece um bloco operatório. Não é medo que sinto, mas vergonha, ninguém me explicou que estaria nua durante o procedimento. Tenho quinze anos, um lençol separa o olhar destas pessoas do meu corpo, do meu coração defeituoso. Uma enfermeira aproxima-se, informa-me que o médico estará concentrado no ecrã à minha cabeceira, onde se desenharão as estradas que pavimentam o meu miocárdio, ou será endocárdio, não sei, faltam ainda vários anos para que aprenda a fisiologia e anatomia do coração. Imagino que o meu coração é uma cidade cuja instalação elétrica precisa de reparações, os postes de eletricidade com os seus fios finos necessitam de manutenção, é difícil o corpo sobreviver sem luz. Alguém prepara o cateter que perfurará a minha femoral, dói um pouquinho, usam diminutivos para realçar que não vale a pena chorar, não vale a pena ter medo, a dor terá uma intensidade inferior a cinco em dez, é como uma picada de um mosquito, está tudo bem, perguntam-me, aceno, sim, observo o ecrã, sinto um misto de fascínio e indignação, custa-me admitir a facilidade com que controlam o meu batimento cardíaco, quando, durante tantos anos, fui eu a controlá-lo, até que, certa noite, me fugiu, como um pássaro assustado. Percebo que algo vai acontecer quando entra na sala um homem que anunciam como sendo o médico especializado em arritmias, nas mãos traz luvas e a promessa da cura. Recordo-me da sua gentileza, usou o meu nome, fez questão que percebesse o que ia fazer, vais sentir dor, o importante é que continues a respirar devagar, para dentro e para fora, devagarinho. Outra vez os diminutivos. Olho novamente para o ecrã, imagino pássaros pousados nos fios elétricos, pombas ou estorninhos, concentro-me nessa imagem, alguém anuncia:

é agora.

Os pássaros parecem sossegados. Não sei qual deles é o primeiro a reparar nas labaredas. O fogo consome a caixa torácica, o pericárdio derrete-se, e é como se o coração ardesse, a dor tão violenta, os alvéolos mirram, os pássaros assustam-se, levantam voo, e eu quero impedi-os, habituei-me a eles, quero gritar, fiquem, não se vão embora, estou arrependida, não conheço outro coração, mas a dor paralisa-me as cordas vocais, respira, respira, devagarinho, respira, respira, vai passar, ergo os braços, tento alcançar um dos pássaros, percebo que é impossível, pertencem ao céu, têm de partir, a dor é insuportável, alguém aperta-me a mão, são segundos que deixam de ser segundos, são horas condensadas dentro das artérias, das veias. Quando a dor cessa, queixo-me do sabor a fuligem, parece que tenho cinzas entre os dentes, na língua, nas gengivas, a enfermeira explica-me que é por causa do sistema vasovagal. Como explicar-lhe que o meu coração é uma cidade que brilha e que os pássaros desapareceram, abandonando as ruas mergulhadas em fumo?

Nessa noite, dormimos em casa de uma tia, em Vila Nova de Gaia. A minha mãe afasta as cortinas para que possamos ver o fogo de artifício. É noite de São João. Observo as luzes incandescentes, atravessam o rio, encobrem as nuvens. Dói?

Não tanto como aos pássaros.

*

Dizem que a dor é uma experiência comum, universal. Há dezenas de frases traduzidas em todas as línguas que proclamam a necessidade de sua existência para valorizarmos a nossa humanidade, metáforas com obstáculos que temos de derrubar para chegarmos a não sei onde. A dor é inevitável, o sofrimento uma opção. As recordações que possuo dos momentos mais dolorosos da minha vida estão associadas a momentos tangíveis. São episódios de dor aguda, alguns com minutos, outros com horas. Nenhum se estendeu durante meses, anos ou décadas. Pergunto-me: que memórias teria se essa fosse a minha realidade? Será que as recordações se toldariam, como pontos luminosos no céu, incógnitos, a sombra dos pássaros congelada no horizonte?

*

Imagino os pontos dolorosos (“tender points”) como cartas celestes. Os que experienciam a dor têm o mapa do hemisfério norte. Todos os outros têm o mapa do hemisfério sul. Ou vice-versa. Nunca se encontram. A linguagem é comum, o céu é o mesmo, mas o que vemos é diferente.

*

Por que motivo nos é difícil aceitar que existem pessoas que têm dor diária ou incapacitante? Há quem afirme que é complicado aceitar o que não se vê ou o que não é simples de objetivar. Como se objetiva o amor? Como se vê o vento? No entanto, ninguém duvida de quem afirma ter sentido o ar gelado da noite ou o amor incondicional pelo filho que sorriu pela primeira vez.

*

Há uns anos, descobri que as ablações são procedimentos relativamente indolores. Pode sentir-se desconforto, mas não dor. Desde então, parti ossos, tive diversas infeções, tendinites, e, no entanto, a minha memória mais real, presente e vívida que tenho de dor é a que me acompanhou nesse procedimento. Uma vez, confessei-o a um professor de cardiologia durante uma aula prática, na faculdade. Riu-se. Não acreditou em mim.

*

Procuro imaginar a vida com dor crónica. A imagem que me surge é a de pássaros voando pelo céu, sem lugar onde pousar, sem rumo ou intenção de partir.

É uma imagem de desespero.

*

A capa do livro “Tender Points” de Amy Berkowitz tem o título repetido, como um mantra, e círculos perfurados em vez de certas letras. Se inclinarmos o cartão da capa, a luz atravessa os círculos e espalha-se pela página seguinte, que é negra. O efeito que produz é parecido ao de um vitral. Ou um céu pejado de estrelas moribundas. Um quarto vazio iluminado pelos faróis de um carro que atravessa a noite.

*

Os textos que compõem este livro são pequenos, reflexões líricas, fragmentos de poemas. Amy tem 31 anos e sente que tem 60. As suas comparações são com veículos: o corpo foi atropelado por um trator, o peso dum autocarro sobre os ossos, os músculos, a pele. Jorge de Sousa Braga escreveu, num dos seus poemas, que, aos quarenta, transformamo-nos numa

pomba
com uma das asas ferida
condenada ao mais terrível
pedestrianismo.

De alguma forma, sou atraída pela linguagem dos pássaros. Mas os pássaros também sentem dor. As asas são falíveis. Os bicos quebram-se. As patas também.

Que faria um pássaro com dor crónica? Abandonaria o impulso migratório, procuraria o refúgio do ninho, ignorando as cigarras que gostam de troçar com os outros animais, ou voaria em linha reta, como a linha de fumo que um avião deixa no céu, até que o cansaço o obrigasse a cair,

cair,
cair,

cair.

*

Há um episódio que me vem à memória. Estou no consultório, há papéis espalhados pela mesa, um esfigmomanómetro, um termómetro, dezenas de canetas, um ecrã de computador, um agrafador partido, outro intacto. Explico o diagnóstico à senhora que tem as mãos pousadas nas coxas, o casaco apertado no pescoço. Já desconfiava, responde-me. Chora. Percebo o meu erro imperdoável. Onde estão os lenços? Procuro-os, ofereço-os. Pergunto-lhe o que lhe vai na cabeça naquele momento,

medo que não acreditem em mim.
medo que deixe de conseguir fazer as minhas coisas.
o que posso fazer?

Conversamos, discutimos planos, agendamos uma nova consulta, despedimo-nos.

Porque continuo a ouvir a pergunta

medo que não acreditem em mim

uma e outra vez, como uma rima infantil, um poema de brincar?

*

Amy interessa-se pela linguagem usada na dor crónica e em certas patologias, na utilização do feminino, como se a dor pertencesse ao reino das mulheres. Um tema que é analisado com mais detalhe em “Ill Feelings”, de Alice Hattrick. Em “Tender Points”, existem sucessões de imagens: memórias de trauma, de incapacidade, de incompreensão.

As páginas do livro lembram-me lençóis, e cada palavra é um ponto doloroso que fica gravado no colchão. Há uma frase em “Ill Feelings” que me vem à memória quando folheio as páginas de “Tender Points”:

Porque quereria alguém estar doente quando estar doente é tão pior do que estar bem?

*

Existem grupos dedicados ao estudo da dor e das múltiplas doenças que se manifestam com dor crónica. Há consultas de dor, fármacos antigos e modernos, terapias, umas mais consensuais do que outras, há mestrados, doutoramentos, cursos. Há muitas narrativas na primeira pessoa do que é experienciar dor diariamente, a maioria delas em inglês, que nos permitem entrar no mundo de quem vive, sente, trabalha, dorme, almoça, janta, brinca com dor. São livros como o de Amy Berkowitz que nos relembram que a empatia é uma das peças fulcrais na compreensão da vivência da dor crónica, sobretudo em doenças como a fibromialgia e o síndrome de fadiga crónica.

Há um espaço na minha estante dedicado a estes livros. São como cartas celestes que tento interpretar. Gostava que estas narrativas fossem mais acessíveis, traduzidas em português, divulgadas. É preciso questionar para tentar compreender. É preciso, é urgente ler.

*

De repente, lembro-me duma crónica de José Luís Peixoto que começa assim:

Zé Luís, nunca te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli.

Penso:

Teresa, lembra-te: nunca sabemos que estrelas um dia irão derramar a sua luz nas nossas casas, que pássaros nos visitarão e abandonarão. Lembra-te das estradas com fuligem e cinza, lembra-te dos pássaros.

Lembra-te.

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A Forma e o Vazio

December 1, 2022 Teresa Tomaz

Estou sentada à mesa da cozinha. É domingo, a chuva cai, em silêncio, ensopando as folhas amarelas que, no dia seguinte, já não estarão no chão. Surpreende-me sempre a impermanência das coisas vivas, como, num certo dia, estão lá, e no outro dia não. Penso nestas coisas, distraio-me, empurro a chávena de chá vazia que tropeça e se desfaz mal embate contra a tijoleira gelada. É a minha chávena preferida. Há flores pintadas à mão pousadas no chão da cozinha e da sala, como se um vento invisível as tivesse arrancado das cerejeiras, roseiras e japoneiras. A minha casa é a memória de uma rua num dia de abril, e é quase possível discernir o cheiro enjoativo das flores mortas misturado com a ameaça contida dos primeiros aguaceiros primaveris.

Fico em pânico. Sinto o desespero a desabrochar e a tomar conta do meu corpo, que arde e treme. Repito: partiu-se a minha chávena preferida. Tento arranjar uma forma de a consertar, percebo que será impossível colar os pedaços e recriar a forma original, procuro na internet uma idêntica, descubro que a produção há muito que foi descontinuada, navego obsessivamente por leilões, lojas de venda de porcelanas em segunda mão. É escusado. Pouso o telemóvel e resigno-me, calço as galochas e recolho os fragmentos maiores, coloco-os num saco de plástico que fecho e guardo num armário.

Tudo isto ocorreu há três anos. Escrevi parte desta recordação nas notas do telemóvel. Fecho a aplicação, levanto-me, abro as portas do armário. O saco de plástico está fechado dentro de uma caixa de cartão. Há agora outros sacos que contêm múltiplos objetos: uma jarra que o meu gato derrubou; uma dúzia de páginas que sobraram de um livro que se desfez quando caiu num tanque com água; uma pequena figura humana cuja perna esquerda e braço direito desapareceram.

Dizem-me que tenho uma relação pouco saudável com os objetos. Que, quando se estragam, quando se perdem, quando se desfazem, fico fora de mim. Penso, de forma recorrente, nas centenas de situações que podem consumir uma casa: um incêndio provocado por uma vela ou por um curto-circuito, uma inundação, um terramoto, um assalto, um desabamento. Os objetos são apenas coisas, dizem-me, é possível substituí-los, não te podes agarrar tanto, há coisas mais importantes.

Há coisas mais
importantes.

Nunca são apenas objetos. Não estabeleço com toda a parafernália de coisas esta relação íntima que me consome perante a possibilidade da sua perda. Comprei a chávena e a jarra numa pequena loja da minha cidade natal, numa época que me traz muitas recordações. A figura de cores desbotadas é uma cópia imperfeita que me foi oferecida por uma pessoa cujo silêncio ficou gravado nos membros perdidos da personagem de plástico. O livro, ou o que sobra dele, é daqueles que, de tão manuseados, ainda conservam o cheiro do perfume da casa de banho misturado com o do pão barrado com manteiga loreto, alheira grelhada, incenso e pinheiro, prova de que os livros, quando adquirem algum significado pessoal, se carregam para todo o lado, sobrevivem à infância e à adolescência, acompanham-nos na idade adulta, saltam de prateleira em prateleira, sentem a dureza da madeira das estantes e do chão das casas que alugamos e abandonamos.

Por favor, fiquem para sempre, digo eu às coisas que conheço.

A frase não é minha, é de Patti Smith.

***

Há cerca de uma semana, assisti ao documentário realizado por Jonah Hill, “Stutz”, sobre o seu psiquiatra, Phil Stutz. Não estava a prestar muita atenção, até que, no ecrã, surgiram as palavras “Loss Processing” (Processamento da Perda). Phil Stutz explica que as pessoas são más em processar uma perda, e que, antes dela, já estão preocupadas. Sugere “o poder da desvinculação”, ou seja, podemos querer muito uma coisa, mas também devemos estar dispostos a não a ter. O psiquiatra convida Jonah a imaginar algo que tenha medo de abdicar. Jonah fecha os olhos.

Imagina-te a agarrá-la como se fosse um ramo de uma árvore, é assustador, tens medo de a largar, mas largas na mesma. Quando a largas, começas a cair, mas não é uma má sensação, é uma queda lenta e gentil, para tua surpresa, mas estás a cair. Dizes: estou disposto a perder tudo. Tens de dizer em silêncio. Queres sentir o que estás a dizer. Quando o dizes, cais na superfície de um sol que estava por baixo e o teu corpo arde. Nesse momento, perdeste tudo porque o que possui é o teu corpo físico. Se o teu corpo ardeu, és só um raio de de sol entre os outros. Estás a irradiar em todas as direções. Estás a irradiar uma sensação de amor, de dádiva, que flui de ti. Depois olhas em volta e vês à tua volta um número infinito de sóis iguais àquele onde estás, todos eles a irradiar. Depois ouves os sóis a dizer em uníssono: “nós estamos em todo o lado.” É o mundo dos sóis. Aqui só podes dar, não podes tirar. Não te podes agarrar a nada, é impossível.

Este é o conceito fulcral da obra de Ruth Ozeki, “O Livro da Forma e do Vazio”. A narrativa inicia-se com a morte do pai de Benny e marido de Annabelle. Benny é um adolescente tímido, e após desaparecimento súbito do pai começa a ouvir vozes. Ao mesmo tempo, Annabelle vê o seu problema agravado, uma acumulação excessiva de objetos, aquilo que o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição ou DSM-5 carateriza como “Transtorno de Acumulação”. As vozes que Benny ouve são as vozes dos objetos que o rodeiam: os talheres, as canetas, as camisas de flanela do pai, os livros, os copos. Há uma situação, no início do livro, que é comum a uma das histórias mais famosas de Ozeki, “A Tale for the Time Being”: um pássaro vai ao encontro de uma janela da escola, sem se aperceber do que se trata, e embate contra o vidro, morrendo devido ao impacto. Benny fica perturbado, não pela morte do animal, mas pelo vidro da janela, e acaba por bater na janela com os punhos. Justifica a sua atitude quando é chamado à direção da escola:

Costumava ser areia. Lembra-se de ser areia. Lembra-se dos pássaros, da sensação dos pés deles, a andar. A fazerem pequenos trilhos. Nunca quis ser vidro. Nunca quis ser furtivamente transparente. Gosta dos pássaros, gosta de os ver da janela, por isso estava a chorar. Não devia ter-lhe batido, mas precisava que parasse.

Benny ouve os objetos, percebe se estão zangados ou calmos, tristes ou alegres. Conhece as memórias das mesas, o humor das chávenas, os pensamentos dos livros. Os objetos têm recordações. E, simultaneamente, temos o ponto de vista do Livro do Benny, um Livro que conta a sua história e que vai explicando a importância dos livros no mundo e para a humanidade.

É um conceito curioso, este, de os objetos terem memórias. Pego nas páginas guardadas no saco de plástico. Uma delas tem o autocolante da livraria onde foi adquirido, uma livraria que fechou há muitos anos.

Cresci numa cidade onde as livrarias lutavam por vingar, quando o inverno era ainda impiedoso e eterno. Enterrávamos os rostos na lã e no algodão dos nossos cachecóis enquanto aguardávamos que a senhora do café nos enchesse os sacos de plástico com rebuçados de caramelo, que depois engolíamos à pressa no recreio e surripiávamos durante as aulas. Nas tardes livres, fazia pequenos recados, ia ao talho comprar carne quer serviria para alimentar os gatos vadios, comprava resmas de papel para o meu avô e a revista maria para a minha avó. Se não houvesse pão fresco, davam-me dinheiro para comprar o lanche na escola, eu procurava caramelos perdidos nos bolsos e guardava as moedas e, quando conseguia o montante suficiente, surripiava-me à livraria mais próxima da escola. Os livros entreolhavam-se mal abria a porta envidraçada, havia pouco movimento durante a semana, e eu gostava de imaginar que as lombadas me seguiam, atentas e expectantes, olha para mim, a minha história vai agradar-te, se me levares para casa não te irás arrepender. Nessa época, não tinha acesso à internet, desconhecia as críticas literárias, as únicas pessoas que me aconselhavam eram o meu melhor amigo e a livreira. Este acabou de chegar, acho que vais gostar. A relação entre um livreiro e o leitor é peculiar, como se, sabendo os livros que figuram nas nossas estantes, conhecessem uma parte da nossa identidade escondida dos outros, revelando uma intimidade distante.

Tocava as capas com as pontas dos dedos, as mãos continham a ingenuidade própria de uma adolescente que desconhecia, então, que sempre gostaria de ver desenhos animados, descobrir histórias de fantasia, nutrir a vontade de preservar as memórias da infância, sem saber que a vida conteria muitos parágrafos dedicados ao trauma e ao abandono. Desconheço por que motivo certos livros nos chamam, sussurrando palavras que não conseguimos ouvir, palavras que se assemelham a parestesias que nos incendeiam as mãos. Foi desta forma que, por exemplo, “Uma Casa na Escuridão”, de José Luís Peixoto, me escolheu. Nada no aspeto exterior me atraiu, os portões lúgubres da edição da Tema & Debates incomodavam-me, tão diferentes das ilustrações coloridas dos livros de fantasia que devorava. Mas os livros têm motivos que a razão conhece e os leitores desconhecem. Para Benny, a biblioteca e os livros tornam-se centrais na sua vida:

Vagueava pelas estantes, deixando os títulos chamarem a sua atenção, descobrindo no processo que os livros têm as suas próprias vontades, que o escolhiam tanto como ele os escolhia a eles.

“O Livro da Forma e do Vazio” é uma história densa, às vezes com temas complexos, pois Ruth Ozeki é, além de escritora, sacerdotisa budista. Tal como “A Tale for the Time Being”, o zen ocupa uma parte importante da narrativa. Há uma personagem que nos remete para a japonesa Mari Kondo, uma empresária especializada na arrumação. Nesta história, Aikon é uma mulher que abdicou da sua rotina frenética para se tornar sacerdotisa. Ruth Ozeki escreve narrativas dentro de narrativas, e, neste livro, existem vários pontos de vista: o de Benny, Annabelle, o do Livro do Benny e do livro que Aikon escreveu (portanto, do ponto de vista de Aikon também). Já perto do fim do livro, Aikon descreve um episódio da sua vida: quando estava a servir chá ao seu mestre, a chávena escorregou e caiu ao chão. Era a chávena preferida do mestre, tinha-a recebido do seu professor. A chávena não se partiu, mas o mestre disse:

Já estava partida.

Aikon sente-se confusa. Não havia lascas ou qualquer defeito provocado pela queda. O mestre conta a história de quem fez a chávena, dispersando-se na narrativa, e Aikon, impaciente, repete que a chávena não está partida. O mestre responde-lhe:

- Para mim, está. É a natureza de uma chávena de chá estar partida. Por isso é que é tão bela agora, e porque a aprecio enquanto posso beber dela. - Fitou-a com carinho, deu um último gole e pousou a chávena vazia cuidadosamente no tabuleiro. - Quando se for, foi-se.

Nesse dia, o meu professor deu-me uma lição inestimável sobre a impermanência da forma e a natureza vazia de todas as coisas. (…) Quando tudo o que imagino meu - as minhas posses, a minha família, a minha vida - pode ser varrido num instante, tenho de perguntar-me: O que é real? A onda lembrou-nos de que a impermanência é real. Isto é acordar para a nossa verdadeira natureza. Já está partida. Sabendo isto, podemos apreciar cada coisa como ela é, e amarmo-nos uns aos outros como somos - completamente, incondicionalmente, sem expetativa ou desapontamento.

O que significam os livros nas nossas vidas? Os objetos que guardamos e expomos nas escrivaninhas, nas estantes, nas paredes das nossas casas, os objetos que vestimos, colares enrolados, anéis pendurados nas articulações, o que significam? Talvez a pergunta não seja esta. O que procuro não é esse significado, mas sim a aceitação da impermanência, abrir a mão e observar o movimento ascendente, os objetos não caem, libertam-se, como pássaros que partem, os livros não se esquecem, as histórias são problemas de forma e de vazio, como a poesia, como as fábulas, como as epopeias, como as palavras de Patti Smith:

Acredito no movimento, acredito no mundo, esse balão que vai continuando ininterruptamente a sua rotação. Acredito na meia-noite e na hora do meio-dia. Mas que mais acredito? Às vezes em tudo. Outras vezes em nada. (…) O meu lar é uma secretária. Uma amálgama de um sonho. O meu lar são os gatos, os meus livros e a minha obra nunca terminada. Todas as coisas perdidas que um dia poderão chamar por mim, os rostos dos meus filhos que um dia irão chamar por mim. (…) Tenho vivido dentro do meu próprio livro. Um livro que nunca planeei escrever e em que vou registando o movimento do tempo para trás e para a frente.

***

Partiu-se a minha chávena preferida. Os fragmentos de cerâmica espalharam-se pelo chão. Agora fazem parte da casa, escondidos em recantos inacessíveis ao olhar. Passar-se-ão anos até que encontre um diminuto pedaço, uma pétala de cores desmaiadas. Nessa altura, imagino, já terei aprendido que as pétalas são feitas para as apanharmos com as mãos em concha, para depois enchermos os pulmões de ar, soprarmos e observarmos como rodopiam, levadas pelo vento. É assim com tudo, até connosco. Às vezes, temos de abrir os armários, desfazer os nós dos sacos, pegar nos pedaços de loiça, nas figuras de plástico, nas páginas rasgadas, largá-las, deixá-las partir. No fundo, nunca lá estiveram e estarão lá para sempre, numa existência conjunta que se prolonga até ao infinito da forma e do vazio.

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