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O Quarto do Confinamento

June 20, 2023 Teresa Tomaz

De tempos a tempos, sonho com o meu primeiro quarto. Era um quarto comum, de paredes brancas, estantes de madeira com livros infantis e peluches, uma cama com uma colcha colorida. Foi aí que aprendi a cadência da respiração. É muito vívida a memória de, no escuro, pousar o olhar no guarda-fatos e perceber que o coração batia sem rumo, sem ritmo, os pulmões incapazes de acompanhar os órgãos confusos. Algo se estragou dentro de mim, pensei. E era irreparável, esse estrago. Há algo que parte assim que percebemos que não controlamos o corpo, um veleiro que naufraga, a inocência afundando-se. Este foi o início da minha reclusão interior, o confronto com a violência contida no organismo que vive em comunhão com os outros, mas também irremediavelmente isolado, um bivalve incrustado numa rocha.

O sonho mais comum é aquele em que, certo dia, atravesso a avenida, ganho coragem e toco à campainha do prédio, peço a quem agora ali vive que me deixe entrar na casa onde vivi durante quase uma década, onde disse as primeiras palavras, onde comecei a andar, onde vi o meu gato pela primeira vez, não o abraces com muita força, ainda é pequenino, onde recitei as orações que a minha mãe me ensinava na varanda do meu quarto enquanto recolhia a roupa, apressada,

santa Bárbara bendita,
que no céu está escrita,

peço que me deixe ver uma última vez o quarto onde ouvi o som de um tiro, seco, como um trovão, o pânico da minha mãe, a vizinha que me costumava afagar o cabelo, as nossa varandas juntas, como gémeas no ventre, a vizinha abandonando o apartamento, o marido morto, os hematomas escondidos debaixo do avental, a polícia, as sirenes,

com papel e água benta,
livrai-nos desta tormenta.

A recordação desse quarto visitar-me-á em dois mil e vinte, repetidas, incontáveis vezes. A minha mãe conta a história que, naquele dia, éramos três em casa, o meu avô aproveitara a feira semanal para nos visitar. Quando ouviram o tiro, a minha mãe ficou lívida, estarrecida, mas o meu avô, habituado à violência, às guerras, sentiu curiosidade, queria ver o que se tinha passado no outro apartamento. A minha mãe foi a primeira a encontrar a vizinha, ambas chamaram a polícia, e o meu avô, inquieto, queria sair do quarto, mas ali ficou, comigo. A violência só pode existir fora de casa, nunca dentro das nossas paredes, disse. Se deflagra no interior, tens a tua casa destruída.

É nisso que penso quando regresso do trabalho. Estou certa de que fabriquei as palavras do meu avô, a memória nunca é tão minuciosa, o meu avô nunca teve um discurso tão eloquente. As ruas estão vazias, foi decretado o estado de emergência. Quando entro em casa, procuro deixar a violência lá fora. Porque são violentos, esses meses, e serão violentos durante anos. Retiro as roupas, dispo-me, entro no chuveiro, lavo-me, vou para o quarto. Da minha janela, eu e o meu gato assistimos à dança das árvores. Observamos o modo como se enchem de folhas verdes, indiferentes à estagnação que se sente. Porque é isso que se sente, estagnação, a atmosfera eletrizante que antecede

as trovoadas
que no céu andam armadas,
lá na serra do Marão,
onde não haja palha nem grão,
nem meninos a chorar,
nem galos a cantar

nem pessoas que, como a minha vizinha, se veem obrigadas a ficar em casa, a violência presa no interior, a minha mãe sempre me disse que se devem manter as casas abertas para que o trovão entre e saia em segurança, se as fechamos o trovão fica lá dentro.

Altas vozes vão no céu.
Valha-nos a Divindade.

Não sei o que nos vale. Nesses primeiros meses, a vontade de arregaçar as mangas é muita, ainda que a incerteza impere. Nada apagará a recordação de caminhar pelas ruas vazias, como se estivéssemos a cometer uma infração, ainda que tenhamos o cartão da ordem na carteira, ainda que tenhamos uma autorização que colocamos no carro. O céu parece sempre amarelado, carregado de tempestades. Pedem-nos para fecharmos as portas, para resguardarmos os que precisam de cuidados, aqueles que são frágeis, pedem-nos para vestirmos fatos, usarmos luvas, desinfetante, as minhas mãos enchem-se de cortes e de hemorragias que não estancam, pedem-nos que liguemos às pessoas que estão doentes, assustadas, infetadas, a voz perdendo a intensidade entre acessos de tosse, há sangue hoje, doutora, envio cartas por email, referenciações para o serviço de urgência, penso nos colegas que não dormem nos hospitais, no cansaço, ligo no natal, no ano novo, na páscoa, nos aniversários, tudo isso perde o significado, às vezes rimo-nos, feliz natal, às vezes choramos, há sempre alguém que não atende o telefone no dia seguinte, tememos saber a razão.

Sonho amiúde com incêndios. Lembro-me das palavras de José Luís Peixoto misturadas com as de Anabela Mota Ribeiro,

Compreendemos que deflagra um inocência que nos impede de continuar, que engole os prédios, as ruas, as árvores, as pessoas.

O som da respiração enchia o quarto. Os meus pulmões, fracos, entre as costelas, esvaziavam-se de ar. A escuridão, dentro de mim, em todo o mundo, sufocava-me lentamente.

O livro que mais recordo neste período é “As Aves não têm Céu”, de Ricardo Fonseca Mota. Li muitos outros, antes e depois, mas este foi o que perdurou na minha memória. Sonhava com a sua capa, com os pássaros sem céu. Nós éramos os pássaros sem céu.

Alguns profissionais de saúde definem os piores meses da pandemia COVID-19 como Anabela Mota Ribeiro descreveu em “O Quarto do Bebé”: “tempos de guerra”. E eu que, tal como Susan Sontag, não aprecio metáforas militares, recordo esses meses como a música “Untitled #8 - Popplagið”, de Sigur Rós: a melodia delicada nos primeiros segundos, a esperança, as frases repetidas como um verso até se desbotarem, gastas, como os desenhos que perdem cor nas janelas sujas e cansadas, os

vai ficar tudo bem,

e, por volta do sétimo minuto, o algarismo que carateriza a criação, sete, a voz de Jónsi altera-se, grita, ribomba como os trovões que santa bárbara tenta combater, a bateria irrompe e domina a música, violenta.

Este texto não é um elogio ao papel dos profissionais de saúde durante a pandemia COVID-19. Na verdade, tal como muitos verbalizam - enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, médicos, assistentes operacionais, técnicos superiores, secretários clínicos, entre outros - não pensamos muito nesses tempos. O livro de Anabela Mota Ribeiro obrigou-me, no entanto, a analisar esses meses. E ela está certa: há violência nessas memórias e na certeza que, quando voltar a acontecer algo semelhante, repetir-se-ão atitudes e que não aprendemos nada, absolutamente nada, pois continuaremos, mal o trovão chegue, a rezar a santa Bárbara,

Santa Bárbara bendita,
Que tens a palma na mão,
Pede a Nosso Senhor
Que não mande mais trovão.

É evidente que “O Quarto do Bebé” é muito mais do que um diário do confinamento. Mas a sua leitura levou-me a gavetas de cómodas que já não abria há muito, como se, nos meus sonhos, voltasse a ser a criança que navega num quarto que já não é o seu, mas que imagina ser, porque se recorda de todos os pormenores, do local onde estava a cama, onde pousaram borboletas peludas durante a invasão dos insetos na década de noventa, onde brincava com um gato que há muito partiu, onde rezou a santos, convencida que, se não o fizesse, o coração dispararia de novo, onde brincava sozinha, onde ouvia a voz amável da vizinha, onde imaginava vir a ser muitas coisas, sem saber que, anos mais tarde, estaria isolada no quarto de outra cidade, com outro gato, uma Teresa distinta de tantas outras Teresas que habitaram, até hoje, nove quartos diferentes, sabendo, no entanto, que se um relâmpago cruzar o céu começará a recitar, inconscientemente,

Santa Bárbara bendita.

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Exílio

April 25, 2023 Teresa Tomaz

Tenho sete anos. Pego em todos os meus lápis de cor, afio-os e disponho-os sobre a mesa. Os corpos lânguidos têm nomes: o vermelho é o Gonçalo, o amarelo é a Vanessa, o azul é a Adriana, o verde é o João. São os nomes dos meus colegas de escola. Gosto do Gonçalo, atribuo-lhe a cor do coração. A Vanessa tem o cabelo amarelo. A Adriana é a minha melhor amiga, o azul é a minha cor preferida. O João empurrou-me na escola e disse que tinha os dentes grandes, por isso designo-lhe a cor que menos gosto. O cheiro a tinta e a terbentina lembram-me a primavera, a mesma primavera que existe nos quadros que o meu avô, sentado a meu lado, cria. Observo a forma como ele segura o lápis preto sobre a tela branca, os ossos das hidrângeas que serão vestidos com combinações como as que a minha avó usa quando sai para comprar carne ou para conversar com os vizinhos. O meu avô pinta tal como um alfaiate tira medidas aos seus clientes, é meticuloso, apaga linhas, recria-as, usa fotografias como referência, ajusta os óculos, limpa-os, leva o dedo à boca e humedece o pincel, mistura tintas, pousa os instrumentos quando a campainha toca e entra um freguês, boa tarde, vinha tirar um retrato tipo passe, trago uma fotografia da minha mãe para retocar, quanto custa uma sessão de carnaval?

A porta da casa dos meus avós é de vidro e solta um murmúrio contrariado quando a abrimos. A princípio, custa-me fazê-lo, a porta é pesada e o meu corpo ainda é pequeno. Distribuo impressões digitais na superfície brilhante, mas a minha avó nunca me ralha, pega num pano e limpa-as, sempre fui pobre mas limpa, repete. Os meus avós vivem numa casa estreita que tem dois andares e, nas décadas vindouras, conhecer-lhes-ei várias ocupações, florista, fotógrafo, cozinheira num restaurante, dono e dona de uma loja de produtos artesanais. Mas serão as flores e as fotografias que perdurarão na minha memória, dispostas no primeiro andar, onde passarei a infância e a adolescência. A casa tem muitas escadas que rangem quando as pisamos. No primeiro andar existe uma prateleira onde uma estátua de São Bento da Porta Aberta descansa, o rosto virado para a porta de vidro escancarada, os transmontanos são como os bracarenses, não sabem fechar portas, repete a minha avó enquanto varre a sua parcela de rua. No Natal, o meu avô coloca ao lado da estátua um menino Jesus, e durante anos acreditarei que aquele santo pertence ao presépio, desafiando o rosto incrédulo da catequista.

Os meus avós vivem no segundo andar. Escadas de madeira separam o negócio da intimidade do lar. Há quadros pendurados por toda a casa, paisagens de Trás-os-Montes, campos de trigo e de centeio onde mulheres vestidas de preto se curvam, o peso do sol nos seus ombros. Há flores, muitas flores: germânios, gerberas, miosótis, girassóis, flores cujo nome desconheço e cujos caules a minha avó enfia em esponja verde ou enlaça com uma fita decorativa, criando ramos que mulheres jovens apertarão nos altares das igrejas, grinaldas onde mulheres viúvas apoiarão os corpos dobrados, o orvalho substituído por lágrimas. Quando termino de criar histórias com os lápis, subo ao segundo andar e ponho-me a ver desenhos animados, escondo-me atrás do sofá, não atazanes o juízo ao cão, empoleiro-me na varanda e ouço o rumor da cidade, os passos na calçada, as rodas dos carros, as conversas entre comerciantes e fregueses, o arrulho das pombas, cuidado, não te inclines tanto, ainda cais. Às vezes, um camião de mercadorias desce a rua, tremem os candeeiros, os vidros das janelas, o chão, e a minha avó, indiferente, continua a mexer nos tachos, intercalando um já vai quando outro cliente chega, desliga o lume, desce as escadas e pergunta o que deseja.

Escrevo no presente, mas faz tudo parte do passado.

Cresci nesta casa até completar dezoito anos e mudar-me para Lisboa. O visão do meu avô começara a falhar e os sinos do Sé de Braga repicavam-lhe nos ouvidos, é um zumbido que não se pode, parece que está uma máquina a trabalhar cá dentro, queixava-se. Vieram as crises nacionais, europeias, mundiais, as Troikas, os políticos, mas ambos continuaram a trabalhar e a viver naquela casa. As articulações da minha avó inchavam com o calor e com o frio, deixou de descer as escadas, depois custa-me a subir. No rés-do-chão, o meu avô confundi-a contas de somar com subtrair, a multiplicação com a divisão, a cabeça já não é o que era, suspirava, a porta de vidro deixava entrar o ar gelado do inverno e plantava-lhe uma tosse húmida no peito. Algumas pessoas voltavam para trás, enganou-se, senhor, deu-me dez euros a mais, outras metiam as notas e as amêndoas ao bolso.

O meu avô fechou a porta do negócio com 87 anos. Venceram-no a pandemia, a ausência de pessoas na rua, as obras na estrada, os ouvidos que zumbiam e as pernas que pareciam arrastar-se. Começou a cair, primeiro em casa, depois na calçada. Era perigoso. A minha avó varreu os três andares com os pulsos enfaixados em anti-inflamatório e aguardente, encaixotou os livros e os quadros, ofereceu móveis, guardou a máquina de costura que a mãe lhe deixou e despediu-se dos gatos vadios que habitavam as traseiras do prédio, chorou por eles, foi a única despedida que a fez chorar, pobrezinhos, abandonados, a vida foi madrasta para mim, só os animais percebem. Mudaram-se para a casa da filha emigrada, um rés-do-chão num apartamento longe do centro da cidade, onde, na velhice, eram obrigados a viver. Quando os visito, a minha avó costuma dizer que vivem no exílio. Chegas a uma certa idade e é como se também emigrasses, o teu corpo é estrangeiro, os velhos morrem e ninguém quer saber deles, olha quantos morreram na pandemia, agora estão debaixo de terra, é o que nos espera. Uma vida inteira guardada nos caixotes, acaba tudo, a vida sempre foi madrasta para quem nasceu no tempo de Salazar, antes não se tinha nada, era uma miséria, agora a miséria é diferente, mas ainda há, só que é mais escondida.

Quando terminei a leitura de “Misericórdia”, de Lídia Jorge, lembrei-me do dia em que entrei pela última vez na casa dos meus avós. Há um capítulo que releio de vez em quando, “Punhos de Pelúcia.” Nesse capítulo, Maria Alberta, a mulher que reside no Hotel Paraíso, recorda o que deixou em casa e do que se despediu.

Despedi-me da sombra da casa, dos seus corredores, dos móveis, dos aparadores, das fotografias.

Volto a 2020. Demoro-me em certos locais da casa: a varanda das traseiras, o balcão da cozinha, a sala, a claraboia decrépita, a estante vazia, o quarto de fotografar, o quarto das flores, a mesa de trabalho. Observo a forma como a luz desenha um padrão único no papel de parede, lembra-me o traço preciso do meu avô. Quero conservá-lo na memória, este rendilhado luminoso que continuará a pousar nestas paredes mesmo após o exílio dos meus avós, quando já não viver cá ninguém, quando entrarem novos residentes nesta casa, quando substituírem o chão, quando a encherem de móveis suecos ou a transformarem noutro negócio, talvez um alojamento local. Fotografo a casa com o telemóvel e a minha Canon AE-1, filmo-a, nas imagens aparecem os rostos dos meus avós e do meu namorado ocultados por máscaras cirúrgicas, procuro a sombra de quem aqui viveu, onde dei os primeiros passos, onde disse as primeiras palavras, onde criei histórias com lápis de cor, onde adoeci, onde vi super-heróis derrotando vilões e vice-versa, onde aprendi a gostar de gatos, onde cresci.

Penso no exílio dos meus avós, do que se terão despedido quando, voluntariamente, decidiram que era melhor abandonarem a casa onde viveram cinquenta anos. Pergunto-me se, tal como Maria Alberta recorda o jardim da sua casa, a minha avó também pensa nos gatos que vagueiam nas redondezas da casa. Ter-se-ão despedido do cheiro a tinta, a madeira e a pó, ter-se-ão despedido das escadas, das cómodas, das faturas antigas, das caixas de rolos fotográficos vazias, dos blocos de notas, dos cadernos onde eu fazia rabiscos e escrevinhava poemas infantis, dos utensílios de cozinha partidos, do sótão poeirento, da antena de televisão que teimava em não funcionar, das carpetes que os faziam escorregar, dos objetos que os filhos deixaram para trás, dos dedais que pertenceram à minha bisavó? Na casa onde vivem agora, desprendem-se do que possuíram.

Não há mais nada que seja só meu, nem o meu corpo, nem o meu espírito.

Sei que falarei muitas vezes sobre os meus lápis de cor na mesa de trabalho do meu avô e sobre os arranjos de flores da minha avó. Mas eles já não falam nisso. Falam sobre as próprias infâncias, os problemas atuais do país e do mundo, procuram responsáveis, nem sabem bem do quê, se é culpa da esquerda, do centro ou da direita, a televisão sempre ligada, mas sem som, não vale a pena ouvir, dizem todos a mesma coisa. Às vezes, parece que os ouço dizer

o exílio vive para sempre dentro de nós.

In memoir
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