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Má filha

February 3, 2024 Teresa Tomaz

Sou uma má filha.

Deixemos a ideia repousar, como uma panela de arroz no fogão, a mesma que a minha mãe tapa, queixando-se que não sabe fazer arroz simples,

só sei fazer arroz de tomate,
de frango,
de grelos,
porque é que será tão difícil fazer arroz assim, simples?

É tão difícil, a simplicidade.

***

Quando Se levanta, ainda muito cedo, arriscando que as últimas raposas lhe subam às varandas e saltam janelas adentro, Deus deixa as portadas para trás e recebe o primeiro sol, outra vez acreditando que ainda vai acontecer de cada um de Seus filhos e cada uma de Suas filhas dizerem Seu nome inequívoca e alegremente. De pensar nisso, Deus chora e, distraído, chega a cantar. Quem passa perto, bem escuta. Se Ele se dá conta, como as mães, canta ainda mais alto, desimportado de desafinar.

“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe

***

As mãos são a primeira coisa que recordo quando evoco a memória do corpo da minha mãe. A minha mãe embrulha-se no casaco cosido com fios de lã grossos, que tanto fazem lembrar as samarras alentejanas penduradas na feira dos santos, o teu avô usava um igual, repete todos os anos, quando passamos por elas. Esconde o rosto do frio, está sempre frio nesta terra costurada com nevoeiro, as suas bainhas bordadas com as luzes dos faróis dos carros que atravessam as montanhas, é preciso abandonar os montes para trabalhar. É o que a minha mãe pensa, mas não diz. Diz antes bom dia antes que o sol apareça, os colegas esfregam as mãos, é cedo, sempre cedo para quem não quer chegar tarde. Todos são professores, e todos trabalham a muitos quilómetros de distância da terra onde acordam e onde se deitam, mas não onde vivem, porque saem de madrugada e regressam quando a noite já pousou no mundo.

A minha mãe deixa que os colegas entrem e se instalem nos bancos do carro. Senta-se onde lhe mandam, no meio, o corpo da colega à esquerda tremelicando, irra, que frio está, o da direita com o coração batendo lentamente, procurando conservar o calor. O motor ruge, protesta, procura-se desembaciar os vidros, ligar o aquecimento, qual aquecimento, a chauffage, brada um dos colegas, riem-se, é preciso rir para nutrir a resiliência. Alguém se esquece de sintonizar a estação de rádio, os locutores alegam cansaço, naquele tempo não existiam comediantes que trabalhassem tão cedo, ou, se existissem, ninguém se recorda. A minha mãe recorda-se, sim, da paisagem, o granito empilhado nos montes, a desolação da ausência acentuada pelos primeiros raios de sol que pousam nas nuvens, lá em baixo, parece o mundo visto lá de cima, do avião, só que a minha mãe não sabe, faltam tantos anos para que entre pela primeira vez num avião, para que observe o mar de nuvens, tão irreal como verdadeiro. Naquele dia, a minha mãe não pensa em aviões. Pensa no jantar, na sopa que é preciso fazer, na menina no jardim de infância, questiona-se se a sogra não se terá esquecido de ajudar a vestir a filha, que vergonha, lembra-se da chamada recebida na escola, lá em Cabeceiras de Basto, bom dia, desculpe, a sua filha hoje só veio com as meias-calças e a camisola, esqueceram-se do vestido, a vergonha, meu Deus, a educadora rindo-se, meu Deus, Jesus santo, desculpe, risos, mais uma história para contar quando a menina for crescida.

***

Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus Filhos e haverá de buscá-los eternamente.

“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe

***

As mãos da minha mãe têm veias tortuosas desde muito cedo. É o que ela diz quando as observa. As pontas dos dedos tacteiam as manchas da cor do café com leite que lhe salpicam a epiderme. São mãos de quem trabalhou no campo e de quem as mergulha na lixívia. As veias parecem as estradas que, ainda hoje, a conduzem até à escola onde trabalha, a cerca de setenta quilómetros da cidade onde vive. São como os caminhos da aldeia, talhados em pedra, onde a mula do teu avô se punha teimosa e rosnava queixumes. Já te contei que o teu avô era carpinteiro? E que, mesmo vivendo na pobreza, conseguiu que todos os filhos estudassem? O orgulho do meu avô é o orgulho da minha mãe, transmitido entre gerações como a Bíblia sublinhada.

A minha mãe roda o pulso direito para mostrar o resto das manchas, mas não roda o esquerdo. Não consegue. Está congelado, como as estalactites das histórias e dos contos de fada. Se o forçar, parte-se.

***

Ninguém sabe precisar com exatidão as horas em que tudo aconteceu, as últimas palavras pronunciadas, os sons que se escutaram. O carro está quente, faz calor, mas é um calor bom, como aquele que nos recebe quando entramos numa cama gelada, acariciada por um cobertor elétrico, ou quando nos aconchegamos em cobertores acabados de passar a ferro. Os olhos fecham-se, todos dormem num sono que parece mágico, o carro deixa de ser uma máquina de transporte terrestre e passa a ser uma máquina de fazer destruição, queda livre, o carro deixa de ser carro para ser avião, as nuvens lá em baixo, mas um avião sem asas não sabe onde pousar, e não há Deus nestas horas, dirão uns, ou, dirão outros, foi Deus que os salvou da morte certa. Se Deus escreve direito por linhas tortas, o carro, que devia ter virado na curva, seguiu a direito, quebrou a cerca de proteção e deslizou ponte abaixo, vinte e cinco metros contraídos num segundo. E, depois, a escuridão.

***

Imaginei que cair ao fundo da ilha fosse como adentrar as vísceras de Deus ou do diabo.

“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe

***

Mais tarde, haveriam de me levar ao hospital. Retenho pouco desse momento que, para os que me acompanharam, foi solene. O corpo da minha mãe, irreconhecível. As mechas de cabelo coladas ao rosto inchado, rosa, como os flamingos que Felicíssimo vê na ilha da Madeira. O corpo da minha mãe era um animal em peregrinação, parte dele desabitado, sem memória, sem consciência; a outra parte em constante trânsito, talvez ainda voando sobre a ponte de Cavez, que bonitas são as nuvens. Creio que a minha mãe sonhou as nuvens. Não há nuvens na ponte de Cavez, só o rio Tâmega correndo, indiferente às preces humanas. Mas, naquele momento, também a mim me parece que sonhei a minha mãe. Não lhe reconheço o rosto, o ombro deslocado, as pernas costuradas, as costelas partidas.

Reconheço-lhe, sim, as mãos. O cheiro a lixívia misturado com laranjas acabadas de descascar. As veias tortuosas, com manchas de café com leite. As mãos de Deus. Deus na escuridão.

***

E a minha mãe chorava dizendo: Deus te abençoe, meu filho. Estava tremendo como se tremesse por mil anos, e eu supliquei que se alegrasse. Então me abraçou.

“Deus na Escuridão”, Valter Hugo Mãe

Não tenho irmãos. Não tenho irmãs. Não sei quem quis que não tivesse. A minha mãe, quando ainda acreditava em Deus, dizia que foi obra Dele. Deus não quis. Às vezes, sofro por não os ter. Mas o sofrimento é um pecado, porque é egoísta, e Deus não haveria de gostar. Porque, talvez assim, não fosse uma má filha, daquelas que abandonaram a terra, que deixaram a mãe na cidade onde ela a pariu. Talvez assim não sentisse a culpa de não telefonar tanto como devia. Porque a mãe fez tantos sacrifícios. Mal os flamingos levantaram voo do seu rosto, já ela regressava à escola, aos meninos e meninas, às letras e à matemática. É preciso que os buzicos, diria a família do meu namorado e as personagens de “Deus na Escuridão”, aprendam as letras e os números, porque a vida não espera por ninguém.

Sou uma má filha porque quis partir. E a minha mãe deixou-me ir. É preciso ser algo parecido a Deus para deixar os filhos partir. “Eu deveria saber amar tanto que aceitasse a ausência.” Mas eu não sabia, naquela época, que Deus é mais parecido às mães do que aos pais. Sou uma má filha porque não rezo como devia à minha mãe. Às vezes tenho palavras duras para com ela. Sou como as lapas que pavimentam as rochas, com o corpo escondido na pedra, o rosto voltado para as entranhas do mundo. O sal arranha-me a pele, flagela-me, sabe que peco, que pecados há muitos na terra, mas também no mar.

Sou uma má filha, repito. Mas tenho orgulho na minha mãe. Ainda hoje, levanta-se todos os dias, embrulha-se no casaco de fios de lã, entra no carro e viaja até Cabeceiras de Basto. A ponte de Cavez existe, o rio Tâmega existe, as crianças existem, a necessidade de as ensinar existe. Talvez todos sejamos maus filhos e más filhas para um Deus que nos abraça, mesmo com ossos partidos, mal consertados, um Deus que nos viu partir, um Deus que recolhe os escombros do nosso abandono como quem procura tesouros na areia e os exibe no parapeito da janela, o lixo transformado em histórias. Tudo, um dia, deixará de existir: os nossos olhos, a nossa pele, os nossos cabelos, as nossas convicções, as nossas certezas. E o mundo, esse, continuará sem nós. Só a quietude permanece - ela e as mãos da minha mãe.

Nota: “Deus na Escuridão” é da autoria de Valter Hugo Mãe. O livro foi publicado pela Porto Editora em janeiro de 2024.

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Lealdade

January 15, 2024 Teresa Tomaz

A amizade assenta no pressuposto da reciprocidade, de entrarmos e sairmos das vidas uns dos outros, com momentos passageiros de frenética intensidade.

“Lealdade”, Hua Hsu, Relógio D’Água

Foi na cozinha que a minha avó paterna me brindou com uma das suas primeiras lições. Eu tinha acabado de chegar da escola e trazia os bolsos carregados de pulseiras de rebuçados e caramelos amanteigados. Todos os dias, eu e as minhas amigas saíamos da escola, dirigíamo-nos ao café da esquina e comprávamos gomas e doces que se colavam aos dentes. Dividíamos a comida e o dinheiro, guardando uma ou outra moeda para uma novidade, e enchíamos sacos de plástico, deleitadas. Nessa tarde, recusei o lanche que a minha avó me preparara. A luz da tarde acentuava os contornos do pão fresco barrado com manteiga dos Açores, a minha preferida. Um carreiro de poeira brilhava entre nós, e havia silêncio, um silêncio de palavras apenas interrompido pelo zumbido da chaleira e do forno constantemente ligado, onde batatas navegavam mares de azeite e contornavam um bacalhau que seria servido ao jantar.

A minha avó colocou-me o pão nas mãos e ordenou-me que o comesse, não se desperdiça comida nesta casa por causa de excessos e caprichos, muito menos por porcarias cheias de corantes e de plásticos, para a próxima já sabes que o dinheiro não se gasta em doces. Não protestei. Ia eu a meio da segunda ou terceira dentada quando a minha avó sentenciou algo que repetiria ao longo dos anos, com convicção.

Essa coisa dos amigos é uma farsa. Não há amigos nem amigas. Nesta vida, somos nós, e acabou. Os amigos desaparecem, vão e vêm, e quando cresceres vais perceber que a amizade é uma coisa que pertence à infância e que os adultos não têm amigos. Temos família, temos maridos e mulheres, mas não existem amigos.

A minha avó conhece a arte de exagerar com dramatismo, por isso, não atribuí muita importância à sua lição. Não imaginava a minha vida sem amizade. Achava, então, que cada pessoa que eu conhecia ficaria na minha vida para sempre. Nunca nos separaríamos e, se isso acontecesse, já que teríamos de abandonar a cidade para estudar ou trabalhar, então manteríamos sempre contacto. Abdicaria de todas as guloseimas por esta certeza.

Até aos dezoito anos, construí amizades que foram importantes e insubstituíveis. Ainda hoje acredito que travei, na infância e na adolescência, contactos singulares e especiais, que ficaram na minha memória como uma presença indelével nos recônditos da minha essência. Mas não foram fáceis de conseguir. Eu era muito tímida, sensível aos comentários mais depreciativos e facilmente entristecia com pormenores sem importância. Era muito consciente de mim própria e de todas as imperfeições, como qualquer adolescente, e tentava domar a rebeldia do cabelo para não ser notada. Não era popular, mas também não era excluída. Eventualmente, consegui integrar o meu grupo de amigos, que consistia na minha turma da escola. Em 2006, acabara de ver uma série de animação japonesa chamada “Honey and Clover”, uma história sobre crescimento, amizade, amor e, sobretudo, sobre um grupo de amigos que acaba por se separar, não por aborrecimentos, mas sim porque a trajetória deles chega ao fim. Tracei um paralelismo com a minha vida, usei um programa embrionário de edição de vídeo e elaborei um vídeo sobre a minha turma com a música da série. Chorei muito na despedida e na transição para a vida universitária. Sabia que me separava das pessoas que me reconheciam como Teresa, a miúda que gosta de ler, de séries japonesas e da banda Placebo, e que seria obrigada a conhecer outras pessoas, que nada sabiam de mim. E, sobre o meu cabelo indomável, pairava a sentença da minha avó: a amizade é uma farsa.

(…) o que impulsiona a amizade não é a busca de alguém que seja exatamente igual a nós. Um amigo, escreveu ele, “escolhe conhecer em vez de ser conhecido. Eu sempre achara que era ao contrário.”

“Lealdade”, Hua Hsu, Relógio D’Água

Quando li esta passagem em “Lealdade”, livro escrito por Hua Hsu, sorri. Aos 34 anos, sei que esta perceção, em certa medida, me mudou a vida. Os seis anos de estudos universitários trouxeram-me dificuldades que não antecipara na adolescência. Divórcio, abandono e morte eram palavras que me acompanhavam pelas ruas de Lisboa. Nesses anos, mudei. Mudei tanto que, a certa altura, deixei de me reconhecer. Acredito que, por isso, as palavras da minha avó ressoavam como uma inevitabilidade. É muito difícil encontrarmos alguém no labirinto que permeia a nossa individualidade, quando nós próprios, como figuras mitológicas, permanecemos perdidos. É possível entrar, mas é mais fácil sair quando o caminho familiar é ainda visível.

Talvez por isso tenha apreciado a narrativa de “Lealdade”, um livro de memórias que é muito mais do que o retrato de uma amizade. É também uma reflexão sobre a emigração, o sentido de identidade, os meandros de uma língua que deixa gradualmente de nos pertencer. Hua Hsu, cujos pais são oriundos de Taiwan, começa por descrever uma viagem de carro, a leveza dos gestos, a familiaridade que carregam os passageiros, amigos do narrador. O foco é colocado em Ken, aquele que se tornará o melhor amigo de Hua Hsu. Tudo nos faz lembrar a juventude, que o autor apelidou como “a busca desta espécie de pequena imortalidade.” E percebemos o motivo. Hua Hsu sentia-se como alguém diferente, um jovem que procurava respostas em livros e em álbuns de música, que analisava de forma febril as letras dos Nirvana e fazia “fanzines” numa procura incessante pela sua própria identidade. E, quando o autor perde um dos amigos mais importantes da sua vida, encara o luto e a dor, sendo obrigado a integrar a ausência na sua vida, na sua personalidade, no seu significado.

O livro está repleto de reflexões sobre a natureza da amizade. Nota-se que Hua Hsu passou grande parte da sua vida a pesquisar e a ler sobre este tipo peculiar de relação. “A amizade tem que ver com a vontade de conhecer, mais que ser conhecido.” Mas ser conhecido é também “o sentimento de estar exposto e transparente.” A aquisição de amizades ocorre em situações particulares das nossas vidas, momentos carregados de “eventos”, como os que envolvem intrigas ou que exigem que alguém tome um partido, em sessões de estudo ou até de exames. O desafio está em conseguir ultrapassar estes períodos e querer conhecer o outro, partilhando momentos cândidos, como um simples serão, uma conversa ou uma ida ao supermercado.

Hua Hsu desconhece se algumas das amizades que são retratadas neste livro, especialmente com Ken, se manteriam no futuro. O que o autor sabe é que escrever sobre esses tempos e sobre essas pessoas lhe deu um sentido de identidade. Através da escrita, o autor quis, de facto, conhecer o seu amigo, e acabou por descobrir coisas sobre si, um reencontro talvez inesperado. O luto de uma amizade - quer seja um amigo que se afastou, quer seja porque a pessoa desapareceu - é, amiúde, não tão valorizado como a perda de um familiar ou de um(a) companheiro(a), mas, tal como Hua Hsu nos mostra, não deve ser desprezado.

Há dias, uma amiga minha de infância, com quem eu ia comprar os rebuçados nos intervalos da escola, pediu-me para falar comigo. A mensagem no telemóvel transparecia alguma urgência. Fiquei apreensiva. Teria acontecido alguma coisa? Quando falámos, convidou-me para algo que me emocionou. Acrescentou: “mesmo que já não falemos tanto quanto antes, continuas a ser a minha amiga preciosa, que mantenho no coração.”

Demorei muito tempo a fazer novos amigos. E sei que o fiz porque encontrei, há uns anos, algumas pessoas que mudaram a minha vida porque quiseram, de facto, conhecer-me. Estas pessoas sentaram-se, perguntaram-me quem eu era, o que me fazia rir ou chorar, e não me julgaram. Essa, segundo Hua Hsu, é uma das premissas para a amizade: a vontade de conhecer o outro. Essas pessoas salvaram a minha vida adulta, pois sem elas estaria muito mais só.

“Lealdade” foi traduzido para português do “Stay true”, uma frase repetida por Ken a Hua Hsu. Acho que ambas são importantes, mas “stay true” lembra-me que permanecer verdadeiramente interessada em alguém é uma das premissas mais importantes para tentar que o vaticínio da minha avó não se concretize. E recordo-me de uma Teresa mais pequena, ajoelhada sobre a colcha florida, de mãos entrelaçadas, suplicando:

“Por favor, não te deixes concretizar.”

Nota: “Lealdade” foi lido em dezembro de 2023, traduzido por Nuno Batalha e publicado pela “Relógio D’Água.”

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