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A Montanha

November 25, 2025 Teresa Tomaz

“Le vent se lève! . . . il faut tenter de vivre!
― Paul Valéry, “Le cimetière marin” / “El cementerio marino”

A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona.
― Susan Sontag, “A Doença como Metáfora”



O horizonte é a montanha.

Fui, durante toda a minha vida, avessa à mudança. Cresci rodeada por relevos graníticos e xistosos, e esses foram, desde sempre, os limites que compuseram a minha existência. Uma muralha montanhosa, visível do prédio onde vivia, transmitia-me segurança. Quando descobri que gostava de fotografar, que o peso da máquina era também o meu peso, que a sua lente era a minha visão, dediquei-me a calcorrear o bairro, subir a muros e a imaginar ervas rasteiras, flores secas e troncos velhos como uma metáfora da vida das pessoas que labutam no vale onde nasci. Sentava-me, amiúde, num lugar conhecido como o “alto da forca”, no crepúsculo, a registar os relevos da terra e das pedras que a alcatifam, até sentir a frieza da aragem e do guiador da bicicleta que me levaria até casa, até ao meu quarto.

Foi nesse quarto que li as primeiras obras de José Luís Peixoto. Frequentei um liceu público, no ensino secundário, e era nos intervalos que, juntamente com dois amigos, nos surripiávamos à livraria local, munidos com o que poupávamos da mesada. Nessa época, eu transitava dos livros de fantasia e de ficção científica para algo indefinido, histórias que queria ler, mas que não sabia escolher. Até hoje, não sei o que me levou a pegar em “Uma Casa na Escuridão”. Eu gostava de ouvir bandas de metal sinfónico, power metal e heavy metal; talvez a pintura de Caspar David Friedrich, que mostra os portões de um cemitério, me tenha conduzido ao livro, já nesses tempos tinha o hábito de escolher uma leitura sem saber do que se tratava.

Havia, no meu quarto, uma janela que me permitia ver a casa da minha prima mais nova, o céu e as árvores. Recordo, sobretudo, a forma como o sol exibia o ventre dourado nas telhas da moradia onde a família do irmão da minha mãe residia. Amarelo, dourado, laranja, como gatos lambendo o dorso, com labaredas pintadas nas pupilas.

Fechei os olhos e procurei algo dentro de mim. Sabia-me mudada.
Mas não sabia em quê.

*

Às vezes, lembro-me de tudo.

Lembro-me: era de manhã. Acabara de me sentar, pousara as mãos na mesa. Estava frio, mas eu ainda não ligara o ar condicionado. Ouviam-se pessoas e os seus ruídos familiares, portas que se fechavam, cadeiras que eram empurradas, o compasso do início do dia. Chamei um primeiro e um último nome. Duas mãos entregaram-me um exame, que eu recebi com leveza, sem tomar o peso das palavras. Essas mãos tinham frio, deslizaram uma sobre a outra, direita sobre a esquerda e esquerda sobre a direita, os dedos entrelaçados. Existiram frases atrás dessas mãos dançantes: a esposa debilitada, o clima gelado, o prenúncio da chuva.

Dizem que, quando se ouve uma má notícia, tudo o que vem a seguir é esquecido. A personagem que Joseph Gordon-Levitt, chamada Adam, interpreta no filme “50/50” mostra-o na cena em que o médico lhe revela que tem um “tumor”. Adam reage com descrença, e é quando o médico carateriza o seu caso como “fascinante” que o som é substituído por uma espécie de zumbido, a imagem desfoca-se, subitamente clara, brilhante, quase branca.

Eu acabara de aprender o protocolo de más notícias. Sabia os passos de cor, havia treinado uma, duas, três, dez vezes, sozinha, com atores, com colegas. Não sabia, porém, que o som fino e agudo podia ser ouvido pelo profissional de saúde, como um espigão que atravessa o tímpano. Debruçada sobre o exame, deixei de ouvir o discurso, e o consultório, outrora banhado pela claridade da manhã, pareceu-me áspero, demasiado luminoso, demasiado, demasiado. Tudo isso durou uma brevidade de segundos, recompus-me, procurei os passos do dito protocolo. Perguntei o que desejava saber. Tudo. E eu disse tudo. E vi-o: o zumbido, o espigão no tímpano, a palavra a negrito.

Não foi a minha primeira má notícia. Mas foi a minha primeira má notícia.

*

“Three Oncologists” - Ken Currie (2002)

O cancro é frequentemente retratado na literatura, assim como a tuberculose o foi no século XIX e no início do século XX. São muitas as metáforas usadas para nos referirmos a ambas as doenças, e o estudo desta ligação foi relatada e analisada por diversos autores. Susan Sontag explanou-o em “A Doença como Metáfora” (publicado em Portugal pela Quetzal, traduzido por José Lima); Audre Lorde viveu-o em “Diários do Cancro” (publicado em Portugal pela Orfeu Negro, traduzido por Gisela Casimiro), assim como Rebecca Solnit em “Esta Distante Proximidade” (publicado em Portugal pela Quetzal, traduzido por José Lima). Em “As Que Não Morrem” (publicado em Portugal pela editora Tinta da China, traduzido por Miguel Cardoso), Anne Boyer reflete sobre o que rodeia a palavra “cancro” (na sociedade, no capitalismo, na desigualdade):

Uma doença que nunca se deu ao trabalho de se anunciar aos sentidos irradia na vida do ecrã, tal como a luz é som, é informação encriptada, desencriptada, circulada, analisada, avaliada, estudada e vendida. Nos servidores, a nossa saúde degrada-se ou melhora. Outrora adoecíamos nos nossos corpos. Agora adoecemos num corpo de luz.

“A Montanha”, publicado pela Quetzal, é, segundo o site oficial do Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO), “um romance que integra testemunhos de doentes do Instituto, cujas histórias de vida inspiraram e deram origem às personagens criadas por José Luís Peixoto. O livro nasceu de um projeto desenvolvido em colaboração com dois profissionais do IPO do Porto, num processo de profunda escuta e sensibilidade literária. Gonçalo Paupério, cirurgião do IPO do Porto, e Eunice Silva, à data psicóloga do Instituto, foram os responsáveis por intermediar o contacto entre o autor e os doentes.” Repare-se na palavra “romance”, pois distingue-a da maioria dos livros que abordam os testemunhos de pessoas com a doença, que habitualmente pertencem ao género da não-ficção.

Este livro acompanha a história de seis pessoas : Alice, Fátima, João, Jorge, Daniel e Filipe. Mas há outra personagem, de grande importância: o Escritor, que observa, descreve o que vê, e recorda a sua própria experiência com a doença, neste caso com a doença do pai. A estrutura narrativa lembrou-me, em certas ocasiões, a de um labirinto, como se nos transportasse para a obra “Piranesi”, de Susanna Clarke. Os corredores hospitalares são, amiúde, apelidados de “labirintos”, tal como as frases dos profissionais de saúde, que confundem, edificam estátuas vestidas de jargão, ou palavras estranhas, e o seu protagonista, que escreve, procura um sentido, um caminho através das paredes caiadas de branco, onde o mar embate.

José Cardoso Pires fala-nos da “brancura hospitalar”, como José Luís Peixoto nos escreve sobre os corredores do livro que são “iluminados por lâmpadas fluorescentes, por um zumbido subtil, luz demasiado crua. (…) Há o branco dos lençóis a cobrirem-te, como há o branco do papel na margem, os lençóis são mais brancos do que o papel.” Assim, “Montanha” é também um “livro-lugar”. Na medicina narrativa, “uma dimensão do saber em que as competências narrativas permitem reconhecer e interpretar a individualidade da pessoa, do processo da doença e sofrimento”, aprendemos a analisar os espaços, destacando-se, aqui, não apenas o espaço hospitalar, do IPO, mas também a casa, a casa antes da doença, presença segura, como refere o autor, e a casa após a doença, onde está Alice, e os espaços de viagem, os países que o Escritor visita.

Há também o tempo: o tempo que antecede a doença, o tempo da doença, o tempo da convalescença, o tempo da recuperação, o tempo em cuidados paliativos. Em “A Montanha”, há também a biografia das personagens antes do diagnóstico, há o tempo passado em instituições de saúde, em casa, em espera (“contou que, com a doença, teve de aprender a esperar”).

E, não menos importante, a linguagem. José Luís Peixoto opta por usar a palavra cancro em destaque, assim: cancro. É uma decisão, acredito, pessoal. Muito já foi debatido sobre como se fala sobre o cancro, nomeadamente os seus eufemismos (“doença prolongada”) ou sobre o foco na “luta”, realçando a dicotomia entre o “vencedor” e o “perdedor”. Lieke Marsman, poeta natural dos Países Baixos, escreve, em “On Being Ill”:

Mais do que uma vez, ouvi dizer que não se deve usar a expressão “lutar contra o cancro” porque implica que aqueles que morreram não lutaram o suficiente (…) No meu caso, eu preciso da ilusão que posso influenciar a minha doença, por isso, digo a mim mesmo que é uma luta. O que é verdadeiramente injusto para aqueles que morreram de cancro é que existam pessoas que se sintam no direito de lhes dizer como devem falar da sua doença.

Esse, a meu ver, é um dos elementos mais importantes desta obra. O seu autor dá voz a seis pessoas, com seis experiências diferentes, oferendo uma janela para os seus mundos. E José Luís Peixoto brinda-nos com uma questão que, no fundo, traduz o conceito de empatia: “Como pode alguém que tem uma coisa, que nunca perdeu essa coisa, nem acredita que alguma vez poderá perdê-la, imaginar o que sente outra pessoa que não a tem, que deixou de tê-la, que nunca mais poderá recuperá-la?” Não é prescritivo, não generaliza. Humaniza.

*

Anos depois, quando nos reencontrámos, depois dos tratamentos, confessou-me: eu nunca mais consegui olhar bem para a senhora doutora, sabe, nesse dia sentei-me no carro e pus-me ali a chorar, sem saber como voltar para casa, e nunca mais olhei bem para si, se a visse na rua tenho a certeza que lhe virava a cara, é que, naquela época, olhar para si era ver um anjo da morte, e eu tinha medo que desse azar, que me viesse levar.

*

Em inglês, o protocolo de comunicação de más notícias chama-se “SPIKES”, que lembra a palavra “picos”, ou “espigões”.

*

Houve um tempo em que quis ser escritora. Roubava cadernos da empresa onde o meu pai trabalhava, cobria-me com os lençóis e escrevia na escuridão, de modo a que a minha mãe não descobrisse o engenho. De manhã, porém, não compreendia a minha caligrafia, inclinava-se para o abismo, como um foguete perdido, as palavras lembrando rochas que se escapuliam pela montanha, caíam como caímos em sonhos, perdidas no abismo do esquecimento.

Houve um tempo em que quis ser escritora.

Houve um tempo em que me tornei médica.

Falta uma frase entre ambas. Mas não sei qual é.

*

Na sessão de apresentação de “A Montanha”, os seus intervenientes - o médico Gonçalo Paupério, a psicóloga Eunice Silva, e o escritor José Luís Peixoto - falam sobre procurar um sentido na doença. A palavra “sentido” é repetida várias vezes, é importante e enche a sala.

Arthur W. Frank escreve, em “The Wounded Storyteller”, que “pensar com as histórias significa juntarmo-nos a elas”. As histórias dos outros não se tornam as nossas histórias biográficas, mas conseguimos ligar-nos a elas, ressoam no nosso interior. As narrativas sobre as doenças - em particular, “A Montanha”, que é um conjunto de várias histórias - permitem devolver a voz às pessoas que as vivem, ao invés de residirem unicamente com os profissionais de saúde. Isso, de certo modo, é a premissa do cruzamento da literatura com a medicina: fornece um testemunho, permite ver, olhar, escutar, criar um sentido. Pois, como diz Arthur W. Frank, “as histórias que as pessoas ouvem moldam as histórias que contam sobre si próprias.” São testemunhas e testemunhos.

*

Na doença, pegamos numa esferográfica, como o meu avô fazia, perante uma tela vazia, gravando-lhe os primeiros esboços. A tela áspera e branca enchia-se de gatafunhos e de borrões de carvão, que o meu avô, com a ponta do dedo, espalhava pelos contornos, criando sombras. Depois, o meu avô levantava-se, dava dois passos atrás, observava a obra, corrigia, pegava numa tábua velha e começava a pintar. Eu admirava o seu processo, questionava-me como conseguiria ele ocultar as linhas escuras e criar imagens coloridas, paisagens transmontanas e minhotas, frutas e flores sobre mesas, pétalas caídas no chão, retratos de pessoas anónimas. Ele ensinou-me que não podemos ser muito rígidos com as linhas, pois elas misturam-se, e ainda que exista a delimitação do antes (lápis) e do depois (tintas), esta esbate-se para criar algo novo, uma imagem diferente da primeira e distante da ideia da segunda.

Penso muitas vezes nesta imagem: o antes e o depois, o reino dos saudáveis e o reino dos enfermos, a fronteira que separa estes dois países, o mundo no sopé ou no topo da montanha. No que se mistura, e no sentido que dali surge. No papel do pintor, semelhante ao do escritor. No papel do profissional de saúde. No papel de quem observa. E nos papéis misturados, como um sorteio.

Ninguém sabe o papel que lhe irá calhar.

*

O horizonte é a montanha.

Ouvi ou li, algures, que somos, em parte, os livros que lemos. Possuímos um espólio pessoal de obras, uma biblioteca interior, que cuidamos. Varremos o pó, passamos os dedos pelas capas, relemos passagens, transcrevemos algumas para um caderno, acariciamos as letras, o significado de certas frases. Recordamos onde estávamos quando lemos aquela epopeia, a música que ouvimos quando declamámos aquele poema, as emoções que despertaram em nós depois daquela narrativa repleta de personagens, ambientes, cheiros, sensações.

Estava na livraria Centésima Página, em Braga, quando vi a capa de “A Montanha”. Mais uma vez, não sabia nada sobre a sua conceção, a sua história. Quando percebi que se tratava de um livro que retratava a doença e a dolência, comecei a lê-lo como profissional de saúde. Depois, comecei de novo, quis ler distanciada da profissão, apenas como uma pessoa não ligada à área, uma leitura comum. Depois, comecei de novo, quis ler como alguém que aprecia as palavras, que já quis ser escritora. Depois, comecei de novo, quis ler como a adolescente que abriu “ Uma Casa na Escuridão”, lá na terra atrás da montanha.

E, depois, simplesmente fui todas essas pessoas, o esboço misturado com as tintas, fragmentada, mas inteira. Fui a frase do meio, que separa os dois tempos, os dois mundos, as duas narrativas.

Fechei os olhos e procurei algo dentro de mim. Sabia-me mudada.
Mas agora sabia em quê.

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